como eu me tornei uma pessoa de verdade


Experimente crescer debaixo de um holofote. Como uma planta de um experimento científico que estuda o quão longe uma planta pode chegar nas condições perfeitas. Dentro de uma redoma de vidro, com seu próprio sol artificial, com cientistas que molham todo dia as suas raízes, e de repente te transportam para um mundo que você passou a vida toda aprendendo sutilmente que é mal. 

Esses tempos estive tentando entender em que momento da vida eu cheguei a conclusão de que eu não cabia. De que eu devia sentir vergonha de mim mesma, do meu corpo, do meu rosto. Quando cheguei a conclusão de que eu era menos? Fico tão triste de pensar tudo que perdi por medo da vida. Todas as vezes que me chamaram para coisas e eu não fui simplesmente porque me convenci de que o convite era por educação e ninguém de fato me queria lá, ou coisas inocentes que não fiz por medo de me arrepender, ou que eu não tentei por medo de quão ridicula ficaria a ideia que os outros tinham de mim, pessoas com as quais eu queria falar e não falei. Sempre achei lindo o fato de eu ter os mesmos amigos a mais de 7 anos, mas até que ponto isso não é porque eu não sei fazer amigos? Porque eu genuinamente sinto vergonha o tempo todo, e acho que estou incomodando, forçando, mesmo sem motivo nenhum para isso, mesmo dentro de uma situação social normal?

Eu sinto que agora na faculdade eu começo a mudar isso. 

Tentei explicar ontem para a minha mãe a minha mudança; Toda vez que converso com minha mãe ela fala algo negativo sobre mim como fato. Eu sou egoísta. Eu não tenho empatia. Eu sou indelicada. Eu não gosto de nada que ela fala. Lembro da cena em minha mente como se fosse um filme que já vi, eu pequena escalando a cadeira do escritório para pesquisar no Google as palavras que ela falava que eu era. Não da para culpar minha mãe pela minha baixa autoestima, nem por tudo que há de errado em mim, mas não vejo outra explicação para essa parte específica, de eu crescer sempre me sentindo um monstro, como se em mim houvesse uma maldade intrínseca, um mal que cheira, que todos sentem quando eu entro em um cômodo, como se eu fosse diferente. Como se outras crianças fossem roupas lindas num cabide e eu fosse uma peça manchada. Como se outras crianças fossem filhotinhos de cachorro de raça e eu não passasse de um vira-lata sarnento. E perceba: nessa analogia, não é como se eu não pudesse em hipótese alguma ser escolhida ou ser amada, mas eu teria que compensar. Como se todo mundo começasse a corrida social a 20 metros na minha frente, então eu teria que me esforçar muito para gostarem de mim.

E eu me sentia um monstro debaixo da cama, um fantasma no canto da sala, como se eu não entendesse o que as meninas crescidas fazem. Não soube brincar de boneca e não soube falar sobre qual dos menininhos da sala gostávamos, eu sempre escolhia o menino errado. Como se eu crescesse de uma forma diferente, em um mundo diferente. Como se as outras crianças crescessem correndo com os pés no chão e brincando de pega-pega e eu fosse a filha de uma família hipocondríaca. Como se cantassem músicas lindas em coro em um idioma que eu não entendo.

Cresci e foi como morar dentro de um globo de neve com uma casinha bonitinha. E não é como se eu fosse alienada e não soubesse de nada: eu vejo o mundo. Mas pelo vidro aprendi que ele não é pra mim, que ele é para pessoas que não tiveram tanta sorte quanto eu. Cresci ouvindo relatos espantados de coisas que as vizinhas e filhas das vizinhas faziam. Vi de muito perto o quão rápido minha mãe passava a desprezar uma pessoa, bastava um gosto musical marginal, uma tatuagem, um cabelo colorido, um divórcio, um cigarro, um timbre de voz irritante, um nariz grande, um decote, enfim, basicamente todas as coisas que não eram um espelho. 

Na minha casa, no meu globo, estávamos acima do mundo. Minha mãe, que casou aos 20 com um ótimo partido e já foi para uma casa própria, estava acima das outras mulheres: ela conseguiu o que aparentemente todas queriam, ela era a fêmea alfa, a leoa. Ela tinha gabaritado a experiência de ser mulher com uma excelência invejável: sempre ouvira as histórias das amigas sobre homens. Homens que não ligam de volta, homens que traem, homens que só querem sexo, homens que moram com a mãe, homens que dirigem motos, homens que são ruins de cama, homens que tiram a sua dignidade, ela ouvia atenciosamente as histórias e tormentos das amigas, mas com a superioridade de "que bom que eu não sou você". E ela flutuava por cima disso como a primeira escolhida no time de queimada vendo os outros jogadores ficarem nervosos com a possiblidade de serem os últimos, como um universitário que passa de carro na frente da saída do cursinho e vê antigos amigos de escola (e aqui cabe qualquer exemplo onde alguém já conseguiu algo que os outros buscam incansavelmente). 

O jeito certo de ser mulher é o jeito da minha mãe: sexo é só no casamento (ou quando há intenção de casamento), namorados devem ser 2 ou 3. A mulher ideal não fala palavras feias (esses dias discutimos fortemente porque eu falei a palavra "buceta"), porque isso te deixa masculina. Ela pode até beber, mas não pode gostar de beber. Pode até fazer sexo, mas não pode gostar de sexo. Uma mulher boa é feminina. É difícil. É conquistada por homens que levam flores e dirigem carros. E gosta só de homens. Usa vestido comprido. Faz as unhas. Fica em casa. Não sentem desejo, não cedem a luxúria. Não aceitam a casualidade. Passa a vida lutando contra os mesmos 5 quilos. Uma mulher boa é bonita e tem os dentes direitos (hoje discutimos fortemente porque eu me recuso a usar aparelho). Sonha em casar e ter filhos. A mulher perfeita se ama, e isso significa fazer as unhas, escovar o cabelo, comprar roupas novas, depilar a virilha com cera, se amar é estar pronta para alguém te amar, para o dia que o cavalo branco chegar. A mulher perfeita é uma boneca, senta direito, come sem sujar a boca, é escolhida, e pega para si, coloca na coleira o primeiro homem decente que aparece, porque o que é uma mulher sem amor? Indefesa. Como alguém pode escolher isso? 

Minha mãe ainda acha que vou casar com meu ex. 

Minha mãe me ensinou que eu devia ser um privilégio de poucos. Que poucos amigos mereciam a minha energia, que poucos deviam ter acesso a minha atenção, que poucas bocas deveriam beijar a minha, que só as pessoas certas podiam falar comigo. E eu entendi. Fazia sentido. Se era pra ser uma boneca, então que pelo menos fosse um artigo de luxo.

E eu cresci. Boneca de madeira maciça muito bem esculpida. Me talhei, Me enfeitei de talentos. Me fiz bem interessante e bem bonitinha de olhar, lá na estante. Fiquei muito tempo sozinha e aprendi muita coisa. Subi de lugar na estante. No quinto ano ganhei o prêmio de melhor aluna, foi um momento importante da minha vida porque eu nunca tinha me sentido tão importante até ali. Foi uma esperança de que talvez eu ainda tivesse salvação, contanto que aquela palavra "melhor" estivesse atrelada a mim. E ai fui assim, em busca das coisas que eu era boa, escondendo totalmente as que eu não era. Sempre tentando diminuir os 20 metros de distância, tentando fazer as pessoas esquecerem que eu era ruim de nascença, tentando distrair dos meus defeitos com minhas qualidades, porque se eu não fosse imaculada, ia voltar a estaca zero. Sendo a filha que a mãe das minhas amigas gostariam de ter, sendo "melhor" do que as próprias filhas delas, sendo melhor do que os meus pais eram na minha idade, usando o meu tempo do melhor jeito, lendo os melhores livros, subindo, subindo as escadas do meu pedestal, tentando merecer algo.  

O problema é que quando você ta muito alto, não tem mais ninguém. O contato humano faz falta. O ar se rarefaz. Você quer descer, você se olha no espelho e não se vê, você tem, sim, orgulho da sua vida, mas como se ela fosse um projeto, e não como se ela fosse você.

Você olha no espelho e vê uma menina que no primeiro dia de aula mais esperado da sua vida chegou em casa e chorou de frustação

Por não conseguir puxar conversa com ninguém se não falassem com ela antes. 

Porque jura que de alguma forma o mundo todo é mal, e se sente pelada quando quer algo. Porque acha que todo mundo vê ela daquele jeito, como uma criança nova, tão nova na vida. Que quando é gentil as pessoas pensam " ah que fofa, ela acha que pode falar comigo, ela acha que nós temos algo em comum, que iludida, ela pensa que podemos ser amigas". Ela acha que todo mundo vê esse algo que ela cresceu vendo. Esse algo que gruda na pele e não sai com bucha. Esse algo de errado que há nela, que ela não sabe de onde surgiu nem como tirar. Que deve existir. Que tem que existir. Que deve ser o motivo pelo qual a minha mãe nunca gostou muito de mim. 

A faculdade foi a minha fada madrinha nessa ridícula alegoria de Pinóquio que eu teci. Não lembro exatamente que dia eu levantei e me perguntei: O que eu ganho?

Cadê a minha faixa de "beijou menos gente no ensino médio?" Cadê meu troféu de "deu menos trabalho para os pais?" O que exatamente eu ganho por não ter bebido, por nunca ter fumado, por não ter ido em festa. Por não ter sido amiga de pessoas que faziam isso? Por ter sido uma "mulher boa"? Por nunca ter levado um fora? Por não ter dado motivo para ninguém me odiar? As pessoas sempre arrumam, mesmo. O que eu ganho por não ter errado? Por não ter tentado? Por ter rejeitado o mundo? Por não ter me dado senso de desimportância? Por ter me mantido tão consciente, por ter ficado em casa lendo artigos enquanto as pessoas da minha idade saiam e faziam memórias. O que eu ganhei por ter lido Laranja Mecânica com 14 anos? Nada além da reação de surpresa do pai da minha amiga quando viu a capa do livro. Não ganhei nada além de um senso de superioridade moral e o privilégio de agradar uma pessoa que eu amo, mas não gosto muito. E nada disso me ajudou em nada. Será que eu sou tão melhor assim afinal? Se todo mundo foi mais feliz que eu?

Tudo mudou ao juntar esses dois fatores: entrar na faculdade e conhecer muita gente muito diferente e que viviam vidas muito diferentes da minha e perceber que eu genuinamente gostava dessas pessoas e queria aprender com elas; e perceber que mesmo tendo buscado ser excelente a minha vida toda, e tentado de tudo para ser especial, fui substituída igual um pneu de fórmula 1. Essa é a vida na estante, esse é o contratempo de boneca. É isso o que acontece quando ninguém gosta de você por ser você, e sim por ser uma ideia bonita. E você fica engessada nessa ideia, e não pode mudar, porque não foi isso que o vendedor da loja prometeu.

Recentemente sinto como se fosse meu primeiro dia fora da torre, a primeira vez que toco grama.

Acho que é a primeira vez que eu respiro com meus próprios pulmões 

E sabe, é bom. Eu erro muito mas é a primeira vez que não tenho medo de errar. Eu erro, eu erro, eu erro, feliz. Eu rio dos meus erros igual uma drogada. Porque o medo constante de errar era muito mais pesado que as consequências inocentes dos meus erros de agora. Que se eu beber, o máximo que vai acontecer é acordar com dor de cabeça, e o que exatamente há de errado nisso? Eu não estou desgraçando a minha família inteira, eu não estou envergonhando meus pais, eu só estou sendo jovem. É na verdade muito injusto fazer isso com uma criança, agora eu vejo isso. É muito cruel ensinar que o mundo não é dela, e sim dos outros.

 Eu tento, eu tento, eu tento. Porque a dor de fracassar não se compara a dor de observar a vida do lado de fora, como se fosse uma brincadeira da qual eu sou grandinha demais para participar, como se fosse um gira-gira que tenho vergonha demais para pedir para entrar. E toda vez que algo não da certo, que sou rejeitada de alguma forma, eu agora consigo pensar " pelo menos eu estou viva", não no sentido de estar respirando, mas de estar deixando os ventos da vida baterem em meu rosto, e isso basta. 


Na minha vida tive uma tendência de atrair pessoas que tentarem me lapidar. Porque no fundo é isso: pensamos que podemos moldar alguém se formos gentis e delicados o suficiente. Achamos que as pessoas são nossas e nos devem algo. Posso colocar fragmentos aqui, mas só eu sei o quão minha vida foi recheada de censura, vergonha, olhares feios, encaradas de cima a baixo, piadas malvadas com tudo que eu gostava, sempre sutil, poucas vezes apanhei, não precisou. Fui manipulada bem fácil e podada a um nível que lembro várias vezes na minha infância de não conseguir escolher um sabor de sorvete para mim. Mas dessa vez, eu não vou deixar. É humano querer viver. Ninguém nunca mais vai me fazer sentir culpa por isso. Desde que sai da minha casa, tudo é muito lindo. O jeito que a luz do poste ilumina a entrada do meu prédio, os dois gatos obesos que moram lá no térreo e as vezes me deixam fazer carinho neles, o fato do meu prédio não ter elevador e todo dia subir os lances de escada com gosto de casa. Gosto muito até dos inconvenientes da minha vida, porque agora ela é minha. Toda vez que sou eu mesma eu sinto orgulho. Quando faço uma piada genuína, me amo mais. É lindo poder fazer as pessoas rirem, é lindo ser alguém. Ser uma pessoa de verdade é isso, é errar, é passar do ponto, falar a coisa errada, é beber demais, é ter gente que não gosta de mim, é não gostar de algumas pessoas, é sentir tesão, é me relacionar com o mundo, é ver e ser vista, é me colocar no jogo, é ter arrependimentos e vergonhas e coisas que eu não gosto de lembrar, ao invés de não fazer nada morrendo de medo de me envergonhar um dia. É se permitir viver a vida e todo o mundo de sensações diferentes que ela trás: beber uma bebida ruim e pensar "meu deus que gosto ruim", comer uma comida boa e pensar "meu deus que gosto bom", sentir fadiga na perna depois de um exercício intenso, sentir nervoso em um primeiro encontro, sentir alegria de estar com gente que gosta de você. Eles não precisam te amar, esses sentimentos não precisam ser para sempre. De repente tudo é muito divertido.

E não há nada de errado, pois estou viva e isso basta. 

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