as crônicas de você capítulo extra

Você encontrou um espelho mágico. Ele te permitia conversar com a sua versão antiga, a Você do passado. Você ficou animada com a ideia pois tinha lembranças muito boas de quem era: a Antiga Você tinha cabelos mais curtos e olhos mais bondosos, tinha um jeito mais puro, mais jovem, era mais feliz. Antiga Você gostava de chuva e gostava de tudo, e tudo deu tão errado pra ela que ela se tornou aquela carcaça velha que Você era agora. Pobrezinha.
 Você adorou a ideia de conhecer a inocência em pessoa uma nova vez, talvez elas pudessem ser amigas.
Você se olhou no espelho e as mudanças não estavam de fato ali. Você estava ansiosa para contar à Antiga tudo que elas tinham passado, e as aventuras maravilhosas que tinham ido, mas a Antiga rapidamente a interrompeu, perguntando sobre o anel. 
Ah claro, Você já até havia esquecido. Um anel de ouro que havia ganhado no passado. Era puro, vários quilates, e ela o amara como poucas coisas. Durante uma tempestade forte, o anel estava dificultando sua locomoção por ser pesado, e acabara o deixando para trás para se salvar. Você explicou isso e a Antiga Você surtou. Chorava e chorava e dizia que não sabia quem seria sem ele. Você se irritou e respondeu que ela sabia sim, que estava bem ali, parada na sua frente
"esqueceu que somos a mesma pessoa?"
"- não somos nada! eu nunca faria algo assim! eu não sou você!" 

Elas tentaram se acertar. Você tentou conversar com a Antiga sobre pessoas que amava, e a Antiga Você simplesmente não conhecia boa parte delas. Esta, por sua vez, tentava falar à Você sobre pessoas que ela amava, e Você ficava sem jeito de lhe contar que não mantinha mais contato com tais. 
E isso nem era tudo.Você começou a se irritar ainda mais. A Antiga Você não era pura, era ingênua. Não era mais feliz: era mais burra. Se achava muito esperta e a própria Você, que era muitos anos mais velha, sempre sentia que não sabia nada. 
Você sentiu tanta raiva que gritou e socou o espelho, apenas para ver a imagem que a causava tanto desgosto multiplicada por mil. Em cada caquinho de vidro, a antiga você chorando por seu anel, em cada caquinho, ela pedindo licença e desculpa. Você decidiu encaixotar todo aquele lixo e se livrar dela de uma vez, e enquanto fazia isso, ouvia a Antiga chorando baixinho, murmurando algo quase indistinguível. 
Estava quase completando sua missão quando ouviu uma vozinha fraca dizer
"-Eu só queria ser amada por *alguém*".
Você se lembrou. 
Não podia ter raiva de quem era antes porque também carregava aquela criança chorona dentro de si. Era ela mesmo, e ela podia não gostar do que via, mas não podia apaga-la do mundo. 
Você arranjou uma cola e colou o espelho de volta, pediu desculpas à Antiga Você e disse que sentia muito pelo seu anel perdido, que sabe o quanto foi difícil, mas que no final ficou tudo bem. Sem mais explicações, partiu. Não queria mais ouvir ela falar mas sabia que dali em diante ela carregaria o fantasma de uma criança no colo, e era responsabilidade dela não deixar que mais nada de ruim acontecesse com ela.
Era possível amar e não gostar? Oh, claro que era, era sim. Você descobriu que a sua criança interna era como um braço, um rim. Era parte dela, e mesmo que não gostasse, precisava colocar um curativo em seu joelho ralado e dar um beijinho para sarar. Porque se não fizesse isso, não ia sarar. E se não sarasse, não ia cicatrizar, e portanto não ia parar de doer jamais.



(no fim só temos nós mesmos)

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