interruptor

 Demorou 16 anos para que eu decorasse de vez qual dos interruptores da minha sala liga qual das luzes. 

São 4 no total, dispostos em duas fileiras de 2. O primeiro acende a luz da sala de jantar e o debaixo, a da sala de estar. Na outra fileira o primeiro acende a luz do piano, e o de baixo, a luz lá de fora. Parece absurdo falar que não aprendi antes, porque é tão simples, mas por algum motivo eu nunca prestei atenção. Toda vez que precisava acender alguma luz, tinha que apertar todos, e desligar os que não correspondiam a luz certa. Demorou 16 anos para aprender, mas agora eu sei. 

E agora eu to indo embora. 

Esses dias acordei suando frio porque sonhei que era o último ano da escola. Bom, é o último ano da escola e acho que o meu subconsciente ainda não acostumou com essa informação. Mas o que me deixa nervosa não é "acabar a escola." Isso me deixa bem feliz, na verdade. Eu tenho sonhado com isso desde o momento que eu ganhei consciência de que a escola um dia acaba. 

O que me preocupa mesmo é ir embora.

Demorou 16 anos para rechear cada casa do meu bairro com uma história. Na frente mora a vizinha que é maluca e na rua do lado tem uma casa que eu juro por tudo que é mal assombrada. Na rua de baixo eu aprendi a andar de bicicleta quando tinha 9. Naquela calçada eu cai de bicicleta e fiz minha primeira cicatriz, quando eu tinha 10. Nos bancos da última rua que nem existem mais eu dei meu primeiro beijo. Demorou tudo isso pra eu conhecer meu lugar, não só meu bairro, minha cidade. Demorou quase 17 anos para conhecer uma cidade. Mas agora cada lugar é perto da casa de um amigo (ou ex-amigo), de um lugar que eu fui  algum dia, de um "lembra quando". E justo agora, que a missão de reconhecimento de campo parece completa, eu vou embora. 

Quer dizer, não agora, ano que vem. Mas qual a diferença do fim pro quase fim quando você é ansiosa? 

Não sei como vou fazer para esquecer todas as manias. A geladeira que tem que dar jeitinho pra abrir e a luz que só funciona quando ela quer. Os melhores lugares pra ver o por do sol e os melhores lugares para tomar café. Agora que eu terminei o meu mapa-mental-da-cidade-natal, eu vou jogar ele no lixo e recomeçar. Outro mapa, outra cidade. Outros lugares para frequentar. Um apartamento gelado e sem sofá com rasgo na lateral. E uma geladeira que não vai precisar de jeitinho para abrir. Eu me preparo para esse dia como se fosse um apocalipse zumbi.

Mas o pior de tudo nem são as coisas que ficam aqui. 

Eu não sei como eu vou fazer se eu não puder ver o sorriso da minha irmã todo dia. Eu fico imaginando ver ela depois de um tempo e perceber que ela cresceu sem eu ver. Eu não consigo imaginar não ver os rostos dos amigos que cresceram comigo. Sei que vou fazer novos amigos, na faculdade e tal, mas com eles eu não vou ter fotos da gente bebê. A gente brinca que vai manter a proximidade, mas a gente sabe que não vou fazer acontecer. Imagino reencontrar minha melhor amiga e ver que ela mudou sem eu perceber. Ela vai estar mais cansada ou mais feliz por motivos que não vou saber.

Estou de luto pela vida que levei.

Estou fazendo um inventário:

Preciso lembrar de todo e qualquer aniversário. Todo mundo sabe que quando você não manda parabéns para alguém é o indicador final de que o vínculo acabou.

 Todo dia eu me pego pensando em jeitos de tornar essa nova casa um lar.

Quais fotos espalhar pelas paredes, quais sabonetes comprar? Qual o cheiro da casa minha vó? Talvez eu ainda possa ligar para perguntar qual desinfetante ela compra, mas ai que tá: vou ter que ligar

Talvez eu decore os interruptores de lá rápido demais

Eu não estou pronta, mas eu preciso estar.

Os sonhos não morrem, e eu vou atrás do meu, que infelizmente mora numa cidade com muitos mais prédios que aqui. Eu sei que é só ano que vem, mas esse dia vem, e os últimos 2 anos foram mais que suficiente pra me provar que 1 ano não é nada, só que é muito. 

1 ano passa rápido, mas muda tudo 

1 ano derruba sua vida de concreto como se fosse um castelinho de areia. 

Você pode até ter desejos que sejam eternos, mas a vida te freia. 

O tempo é um interruptor de planos.

Rápido demais

1 ou 2 anos 

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