me diga algo de verdade
Ele saiu do teatro e ainda retumbava em seus ouvidos o som de seu nome sendo gritado por diversas vozes. Seu braço, ainda um pouco dormente, pendia do lado do corpo, segurando a caixa do trombone que garantia o seu sucesso, batendo indelicadamente na lateral de suas pernas, devido a pressa. Colado ao peito, equilibrava um botão de cravo. Entre o ouvido e o ombro, equilibrava seu celular. Fazia uma ligação.
-Alô? Marcela? Você já chegou? - Sua voz escondia um "não desista de mim".
- Alô.- Marcela girava o canudo no gelo que restara da água mineral que pedira apenas para que o garçom não a expulsasse da mesa e tentava manter a voz serena- Já sim- Sua voz escondia um "posso esperar a noite toda, mas de preferencia não"
- Eu... to muito atrasado?
- Não!
Ele estava.
-Que isso!-ela continuou. Três garçons com seus smokings já haviam se aproximado da mesa para perguntar se "a senhorita já havia feito o pedido". Ela respondeu três vezes que estava esperando alguém, embora ela tivesse certeza que todos já sabiam daquilo assim que ela chegou, em seu vestido azul marinho e salto agulha. Nunca tinham visto uma mulher esperar? Aquelas perguntas eram provocações que ela decidiu ignorar. Lançou um olhar de canto para o garçom número 3, que ria junto com o garçom número 2, antes de responder hesitante ao telefone:
- Sem pressa.
- Eu juro que já estou chegando. Eu tive um... imprevisto.
-Samuel, relaxa. -Ela sorriu consigo mesma, orgulhosa do seu papel naquela interação. Se ela fosse Samuel ou qualquer um dos três garçons, já estaria caindo de amores pela moça bonita e paciente da mesa 7.
Ele sorriu do outro lado do telefone. -Já chego, me dá 3 minutos- Sentiu vontade de soltar um "tchau, beijos" mas obviamente não faria aquilo. Não antes de beijá-la de verdade. São regras que ninguém te conta mas todos sabem, então apenas desligou a ligação e começou a correr. Ele, sua flor, seu trompete e seu terno em direção ao Loire Bistro a todo vapor. Ele estava a mais do que 3 minutos de distância.
Soube que estava perto quando ouviu o suave som do piano ao vivo, sentiu orgulho de sua escolha, ela devia estar impressionada. Entrou pela porta da frente se perguntando se estava com cheiro de suor quando a viu sentada sozinha em uma mesa para dois. Achou-a linda. Suspirou fundo, se aproximou, instintivamente entregou de forma delicada o cravo que carregara de forma brusca durante todo o seu trajeto a pé pela cidade. Marcela sorriu e examinou o homem a sua frente, baixou os olhos até a caixa do instrumento.
-O que é isso ai?- Ela decidiu não agradecer pela flor porque não queria soar facilmente impressionável, mas seu sorriso no rosto a entregava.
-É meu trombone. -E acrescentou rapidamente- Eu acabei de voltar de um concerto- Ele decidiu que era bom complementar para que ela não o achasse um maluco que anda por aí com um trombone.
-Ah! Você é músico né?
-Sou, sim. Toco numa Orquestra, tivemos apresentação hoje.
-Nossa, você deve estar muito cansado, por que não decidiu marcar outro dia o nosso… - Ela gesticula um círculo com os dedos apontados pra ela e para a mesa- ..isso aqui. -A palavra encontro subiu pela garganta, rebateu nos dentes da frente e desceu de volta pela língua, deixando um gosto amargo.
- Não podia perder uma oportunidade de sair com você.
Samuel disse e ela ficou vermelha. Ele também ficou vermelho, mas é porque sabia que havia mentido. Um silêncio constrangedor recaiu sobre o semi-casal e Samuel decidiu corta-lo
- E você? Trabalha com o que?
- Eu sou professora, de ciências. Do fundamental.
- Uau, você não tinha mencionado. Você gosta?
- De que?
- Dar aulas
- Ah, eu adoro- Ela odiava. Odiava as crianças na puberdade, odiava a diretora do colégio, odiava falar a mesma coisa todos os anos. Coisas que ela já sabia
- Sempre quis isso? Digo, era seu sonho ensinar?
- É, hmm, acho que dá para falar que sim- Marcela queria ser pesquisadora. Descobrir coisas novas, nunca antes pensadas. Estudou Ciências Biológicas na UFRJ e começou a dar aulas para tentar ajudar no pagamento do aluguel da casa de seus pais. Agora a casa estava vendida, os pais, divorciados, e Marcela ainda dava aulas. Foi ficando, acomodada, a rotina corrida pisoteando seus sonhos. Ela sorriu e seu sorriso escondia as desculpas que ela torcia para ele não perceber.
A conversa havia tomado um rumo desconfortável e Samuel não sabia onde tinha errado. Ficaram um tempo ouvindo o Jazz que tocava como música ambiente. Marcela examinou a base da flor que ganhara e franziu o cenho, decepcionada. Levantou e foi saindo sem falar nada. Samuel ficou confuso e levantou-se apressado da cadeira. Chamava ou não chamava?
-Marcela. O que foi?
Ela se virou e chegou um pouco mais perto para não ter que gritar, mas não adiantava muito, já que a discussão que se formava entre o casal já era o tópico de conversa de praticamente todas as mesas ao redor. Na verdade, se gritasse o motivo da comoção, apenas acabaria com os "acho que" e "deve ser" murmurados pelo recinto. "Devem ser ex-namorados de muito tempo", "Não, acho que estão terminando agorinha mesmo". Marcela tentou ouvir apenas as palavras que saiam da sua boca.
-Pra alguém tão chique- Gesticulou com a mão inteira para a gravata do homem-, que escolhe lugares tão chiques- Olhou de relance para o pianista que havia, inconvenientemente, parado de tocar e os observava com sadismo-, você não parece ter vergonha nenhuma de mentir para mim- Girou a flor e revelou uma etiqueta na base, escondida entre as sépalas, que ele nem havia notado. A etiqueta dizia "Para Sam, com carinho, -Liz." Quem era Liz não importava. Admiradora secreta? Ex-namorada? A questão é que era humilhante demais uma flor reciclada. Ele nem se dera o trabalho de arrancar a etiqueta. Esse era o tanto que ela importava.
Samuel suspirou fundo quando percebeu o seu engano. Quis bater sua própria cabeça na parede. Não pediu desculpas. Largou uma nota de 20 em cima da mesa para pagar a água que ela pedira e para que não precisasse nem abrir o cardápio, desencanou do troco. Recolheu seu paletó que estava apoiado na cadeira branca. Se dirigiu em direção a porta e disse "vem" assim que passou por ela. E ela foi.
Saíram do restaurante e passaram a caminhar sem rumo. Qualquer um que iniciasse um diálogo seria assaltado por um repleto desconforto, então Samuel decidiu ser cavalheiro:
-Eu sinto muito. Eu entendo sua irritação. Eu só... Ganhei essa flor na saída do teatro e estava com pressa demais para verificar de quem era. Ou se tinha algo escrito nela. Não queria chegar atrasado e ainda de mãos abanando. Acho que eu queria impressionar você.
Ele, cabisbaixo e se sentindo o maior otário, não teve coragem de olhar para ela. Não até ela começar a rir. Ele olhou-a confuso. Será que era tão patético assim?
A risada de Marcela passou de um murmurinho para uma risada sincera. Isso irritou-o levemente.
- O que foi? Eu tô tentando ser sincero com você aqui.
-Não é isso.- Ela recobrara seu estado sério, mas parecia mais leve- Eu agradeço a sua sinceridade, de verdade. É só que..- outra risada sincera- me impressionar? De novo?
Ele nunca esteve tão confuso.
-Samuel.. Você marca o encontro - Ela finalmente podia dizer a palavra- num lugar que eu nunca pisei e nem sonhava em pisar, onde as pessoas devem usar vinho português como enxaguante bucal, você chega todo formal e com todo respeito, lindo, com esse charme de artista tipo "Ai desculpa gata,- ela imita a voz dele em tom de deboche- cheguei atrasado porque tava muito ocupado ali realizando meus sonhos e obtendo imenso sucesso profissional fazendo o que amo". E você queria impressionar MAIS? Não entra na minha cabeça.
Samuel sentira coisas por Marcela quando a viu sentada na mesa sozinha. Sentira coisas ao ouvi-la no telefone, suavemente perdoando seu atraso, mas nada se comparava ao que sentia ao vê-la abrindo o jogo ali. Não eram os elogios a sua pessoa(embora esses trouxessem borboletas ao seu estômago), era a sinceridade em sua voz. Talvez ele de fato se cobrasse demais. Ele olhou sem jeito para a paisagem em que estavam. Tinham alcançado uma ponte em sua caminhada noturna, sem ele sequer perceber De um lado se via o mar e do outro a cidade inteira, brilhando como se fosse a primeira vez. Ele abriu um sorriso enorme para ela:
- Vamos jogar um jogo?
- Que tipo de jogo?
- Me diga algo de verdade.
- Como assim?
- A verdade nua e crua, sem enfeites para deixar ela mais bonita.
-Eu odeio ser professora.- Ela respondeu sem hesitar assim que entendeu o que ele pedia. A surpresa no rosto dele foi rapidamente substituída por outro tipo de sorriso, como se ela fosse uma rebelde e ele, um simpatizante. Marcela ainda digeria as palavras que dissera e sentia a brisa do mar em seu rosto, apoiada na grade da ponte.- Meu deus- ela continuou- eu odeio ser professora.- E riu de si mesma, um tanto decepcionada. Era a primeira vez que dizia aquilo.- Eu realmente devia sair. Não é isso que eu quero, não- ... só não.
O homem respeitou o silencio dela, que parecia traçar um novo plano de vida inteiro em questão de segundos. Marcela decidiu interromper seus próprios pensamentos:
-Sua vez. Me fala uma verdade.
Ele hesitou, mas sabia que só tinha uma coisa a dizer. Podia estar estragando tudo, mas não ia ferir as regras do próprio jogo.
- Eu tinha esquecido completamente do nosso encontro.
Todo o castelo de expectativas ruins de Samuel já estava construído. Marcela atirando o cravo com raiva em seu rosto e um dos galhos cortando sua bochecha, ou jogando a flor no mar, Marcela fechando a cara e abrindo o Uber imediatamente em seu celular. Mas tudo foi destruído pelo som de sua gargalhada.
Demorou um pouco para ela se recompor
-NÃO ACREDITO QUE VOCÊ FEZ ISSO!- Não estava brava, apenas incrédula e achando muita graça.
- É.. por isso que eu estava atrasado. Eu esqueci que ambos os eventos iam ser na mesma data. E na verdade eu to morto do concerto e teria marcado outro dia se pudesse, mas não ia te deixar esperando e não vir.- Ele começou a rir também, de repente descobrindo um ar muito cômico na situação.
Aproveitaram o silêncio, dessa vez confortável, que fica depois de uma crise de riso
-Bom, nesse caso, eu acho que podemos de fato marcar um outro dia. Você deve estar cansado e não quero que converse comigo pensando em dormir. Sim, estou dando uma desculpa para sair com você de novo algum outro dia. Mas por favor, nada de Loire Bistro. Eu odeio usar salto alto.
-Sim senhora- Ele fez sinal como quem presta sentido a um sargento. - Posso ter seu número para combinarmos melhor?
Ela tirou um caderninho minúsculo da bolsa, anotou o número, arrancou a página e aproximou-se com delicadeza para colocar o papel no bolso do terno de Samuel. Olhou-o nos olhos e beijou-o nos lábios de forma breve e quase infantil. Depois saiu andando para a direção de onde tinham vindo, sozinha.
-Tchau, senhor- ela zombou.- Espero que possamos brincar de falar a verdade mais vezes.
Samuel ficou olhando Marcela se distanciar, diminuir enquanto atravessava a ponte. Digerindo o dia, sorrindo consigo mesmo. Olhando o mar e os prédios e perfeitamente lúcido, embora com sono.
Olhou a lua e seu olhar escondia um "obrigado".
Jogou uma moeda no mar antes de deixar, ele também, aquele lugar, que pretendia no futuro lembrar como local do primeiro encontro.
E que aquele fosse um primeiro beijo
Comentários
Postar um comentário